IMPERIALISMO MDELO SEX.XXI, “RAI\u00b4T\u00c9QUI”<\/p>\n

Fui experimentar um carro novo em uma concession\u00e1ria de autom\u00f3veis multinacional, de origem oriental, instalada no Brasil, onde fabrica seus modelos j\u00e1 h\u00e1 mais de uma d\u00e9cada.<\/p>\n

A atenciosa, elegante, perfumada e sorridente vendedora, uma garota loura de, talvez, pouco mais de 20 anos, mostrou genu\u00edno entusiasmo enquanto me descrevia as maravilhas do modelo: o \u201cdis\u00e1ini\u201d moderno do modelo, em sua vers\u00e3o \u201cn\u00edu\u201d, havia ca\u00eddo no agrado do p\u00fablico consumidor brasileiro, e o carro era l\u00edder de vendas na categoria h\u00e1 v\u00e1rios meses. Verificando meu vivo interesse, colocou-me a par das v\u00e1rias formas de aquisi\u00e7\u00e3o daquela maravilha: \u00e0 vista, financiado ou por uma modalidade que est\u00e1 fazendo muito sucesso: o \u201cl\u00edsingue\u201d. Gentil, perguntou-me se eu gostaria de fazer um \u201ct\u00e9stidraivi\u201d e, como eu fizera algumas perguntas de ordem t\u00e9cnica, assuntos que ela n\u00e3o discorria com seguran\u00e7a \u2013 qual era a cilindrada do motor, quantos cavalos desenvolvia e a quantos giros, qual o torque, etc., entregou-me um \u201cf\u00f4uder\u201d explicativo, enquanto deixava-me para conseguir a autoriza\u00e7\u00e3o para sa\u00edda do ve\u00edculo.<\/p>\n

Sozinho na mesa da loja, entorno um gole de caf\u00e9 \u201cpremium\u201d, produzido no Brasil, e obtenho as informa\u00e7\u00f5es que buscava no panfleto. Muito mais que isso, fiquei muito impressionado, pois li ali que o carro \u201cmade in brazil\u201d vem com \u201cbrake light\u201d, o porta-malas tem fechadura \u201cvalet service\u201d, a transmiss\u00e3o autom\u00e1tica conta com \u201cgrade system control\u201d e \u201cshiftronic\u201d, seja l\u00e1 o que for isso, o computador de bordo tem \u201cECO driver\u201d no painel, onde conto com um novo \u201cdisplay Eco indicator\u201d, a tra\u00e7\u00e3o com seu \u201ctraking control system\u201d, e os freios com \u201celectronic balanced distribution\u201d, o que sem d\u00favida me deixou bastante satisfeito, muito embora estas palavras nada me digam, e a dire\u00e7\u00e3o vem com \u201celectric progressive system\u201d, o limpador de parabrisas tem tecla de acionamento \u201cone touch\u201d, e o equipamento de som, o \u201cCD player\u201d tem \u201cCD changer\u201d no painel, enquanto que o ar condicionado \u201cdual zone\u201d, tem tamb\u00e9m o seu \u201cair quality control system\u201d, e podemos ficar muito tranq\u00fcilos com o aspecto seguran\u00e7a, pois o ve\u00edculo vem equipado com \u201cair-bag\u2019s\u201d de s\u00e9rie para o condutor e para o passageiro. <\/p>\n

O tal panfleto informativo \u00e9 distribu\u00eddo no Brasil, um pais que adotou a l\u00edngua portuguesa como oficial desde o s\u00e9culo XVIII, para consumidores brasileiros, que s\u00e3o ensinados desde criancinhas a falar a l\u00edngua p\u00e1tria, l\u00edngua esta que possui dicion\u00e1rios editados no pa\u00eds com cerca de 175.000 voc\u00e1bulos listados. Estima-se que possam existir cerca de 400.000 palavras que possam ser atribu\u00eddas a esta rica e antiga l\u00edngua, que \u00e1 falada por cerca de 350 milh\u00f5es de indiv\u00edduos no mundo todo.<\/p>\n

Mais: apesar da riqueza da l\u00edngua, \u00e9 certo que uma pessoa adulta no Brasil, de cultura m\u00e9dia, consegue se fazer bem entender dominando o uso de pouco mais de 2.000 palavras; que um brasileiro que tenha lido integralmente uma tradu\u00e7\u00e3o para o portugu\u00eas da B\u00edblia Sagrada tomou contato com aproximadamente 6.000 voc\u00e1bulos, e que uma pessoa muito culta, os grandes escritores como Guimar\u00e3es Rosa talvez dominem os significados de algo pr\u00f3ximo de 10.000 palavras.<\/p>\n

Tomo outro gole do \u201cpremium\u201d, olhar perdido de aut\u00f4mato na dire\u00e7\u00e3o de um aparelho televisor ligado para ningu\u00e9m, solit\u00e1rio numa esp\u00e9cie de sala de espera, mais \u00e0 frente, em divaga\u00e7\u00f5es de morador de pa\u00eds de terceiro mundo. Enquanto isso, meus olhos percebem alguns dizeres nos an\u00fancios que v\u00e3o passando na TV: call-center, car system, a loja de roupas da moda \u201cfashion\u201d, localizada no \u201cshopping-center\u201d tal, o \u201cshopping\u201d da fam\u00edlia brasileira, est\u00e1 com pre\u00e7os 50% \u201coff\u201d, e meus pensamentos se perdem em des\u00e2nimo frente a impot\u00eancia diante do imperialismo, que algema, sufoca, cativa, aliena, e passa como um trator sobre nossos valores e nossa cultura, e n\u00e3o deixa uma brecha para questionamento.<\/p>\n

Certamente entre as centenas de milhares de voc\u00e1bulos da fina flor do L\u00e1cio encontrar-se-iam facilmente palavras que descreveriam com precis\u00e3o e beleza, de forma intelig\u00edvel, cada um daqueles detalhes que me haviam sido introduzidos nos \u00faltimos 20 minutos.<\/p>\n

Sou acordado pela voz doce da minha jovem vendedora preferida, que chega, sorridente como sempre, com as chaves do carro.<\/p>\n

Dirigimo-nos finalmente \u00e0 admir\u00e1vel m\u00e1quina, e posso abrir-lhe as portas atrav\u00e9s do simples pressionar da suave tecla \u201coff\u201d do aparelho do controle remoto.<\/p>\n

Entramos no carro e o que vejo de imediato me faz inquirir novamente a minha ador\u00e1vel cicerone a respeito do pa\u00eds de fabrica\u00e7\u00e3o do maravilhoso ve\u00edculo.<\/p>\n

– Brasil, claro \u2013 \u00e9 a resposta entusiasmada!<\/p>\n

Minha tristeza se mistura com minha frustra\u00e7\u00e3o logo que me ajeito no confort\u00e1vel banco, diante do que vejo, e procuro n\u00e3o demonstrar minha irrita\u00e7\u00e3o que j\u00e1 havia subido \u00e0s alturas, e certamente afeta minha press\u00e3o sangu\u00ednea ao verificar que no painel do tal carro nacional, o marcador de um tal de \u201cfuel\u201d vai de \u201cE\u201d a \u201cF\u201d, o marcador de \u201ctemperature\u201d, de \u201cC\u201d a \u201cH\u201d, a tecla de partida ostenta a inscri\u00e7\u00e3o \u201cengine start\/stop\u201d, o motor pode ter seu desempenho incrementado em 20% ao se apertar a tecla \u201cpower\u201d, e palavras estranhas como \u201cfile\u201d, \u201ctune\u201d, \u201center\u201d, \u201ccruise\u201d, \u201ccancel\u201d, \u201cmode\u201d, \u201cseek\u201d, \u201cset\u201d, \u201cclock\u201d, \u201cdisk\u201d, \u201cair\u201d e muitas outras pululam \u00e0 minha frente, embaralhando-me os pensamentos e sentimentos e me deixando mudo, eu, uma pessoa que usualmente fala pelos cotovelos, absolutamente em silencio enquanto as palavras descritivas entusiasmadas de minha orgulhosa vendedora soam surdas nos meus ouvidos, pois, sem exagero, fiquei quase fora de mim.<\/p>\n

Olhei para minha jovem interlocutora em um instante em que ela parou de falar, e avaliei numa fra\u00e7\u00e3o de segundo se era o caso de perguntar-lhe se ela n\u00e3o se incomodava de vender um atentado para nosso pa\u00eds. \u201cMinha p\u00e1tria \u00e9 minha l\u00edngua\u201d, j\u00e1 disse o poeta exilado nos anos 1970, mas ali pareceu-me que o elo de patriotismo j\u00e1 havia se rompido de h\u00e1 muito, se \u00e9 que houve um dia, e que seria in\u00f3cua qualquer tentativa de alerta para o crime em curso.<\/p>\n

Sim, crime mesmo: o C\u00f3digo de Defesa do Consumidor brasileiro estabelece expressamente, entre outras coisas, que as instru\u00e7\u00f5es de opera\u00e7\u00e3o dos equipamentos vendidos no mercado nacional devem conter as informa\u00e7\u00f5es redigidas na l\u00edngua portuguesa, o mesmo com propagandas e manuais. A n\u00e3o observ\u00e2ncia destes quesitos constitui crime pass\u00edvel de puni\u00e7\u00e3o com pris\u00e3o dos respons\u00e1veis. (Bem, ao que eu saiba, este modelo de ve\u00edculo em que eu estava sentado \u00e9 fabricado no Brasil e vendido \u00e0s dezenas de milhares por ano, h\u00e1 v\u00e1rios anos \u2013 j\u00e1 deviam ter aprendido a falar portugu\u00eas, e tamb\u00e9m que, pasmem, o Brasil tem leis.) <\/p>\n

N\u00e3o tive coragem de tirar o brilho do sorriso quase juvenil da simp\u00e1tica e elegante jovem com minhas impress\u00f5es reacion\u00e1rias, e conclui o teste retribuindo-lhe a cortesia e a gentileza.<\/p>\n

Certamente, dentre as cerca de 2.000 palavras necess\u00e1rias para algu\u00e9m se comunicar de forma aceit\u00e1vel, as novas gera\u00e7\u00f5es j\u00e1 incorporaram pelo menos umas mil que n\u00e3o eram pronunciadas ou escritas por Luis de Cam\u00f5es ou Jos\u00e9 de Alencar e Machado de Assis . O processo de miscigena\u00e7\u00e3o ling\u00fc\u00edstica tem se desenvolvido entre eles de forma silenciosa, com apar\u00eancia de beleza e modernidade, embora seja tir\u00e2nica e devastadora. Simplesmente n\u00e3o \u00e9 percebido. \u00c9 astuto.<\/p>\n

A experi\u00eancia toda descrita acima passou-se numa manh\u00e3 t\u00edpica de inverno paulistano, com c\u00e9u sem nuvens, brisa suave, folhas caindo, crian\u00e7as sorrindo, p\u00e1ssaros voando, e n\u00e3o durou provavelmente mais do que uns quarenta minutos.<\/p>\n

Fui para casa cabisbaixo, ombros tamb\u00e9m ca\u00eddos, soturno, com a n\u00edtida impress\u00e3o de que o processo de elimina\u00e7\u00e3o da nossa p\u00e1tria est\u00e1 em pleno curso, e \u00e9 silencioso, sorridente, apelativo, com ares de modernidade. E irresist\u00edvel… Talvez seja tarde.<\/p>\n

Wagner Woelke<\/p>\n

Artigo publicado originalmente em http:\/\/perspectiva-lusofona.weebly.com\/2\/category\/wagner%20woelke\/1.html, em 18\/08\/2011<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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